A PRINCESA DA BABILONIA - CAPITULO IV

CAPÍTULO IV

Passou a noite inteira a falar de Amazan. Não o chamava senão de seu pastor; é desde esse tempo que os nomes de pastor e enamorado são sempre empregados um pelo outro em algumas nações. Ora perguntava ao pássaro se Amazan tivera outras amadas. Este respondia que não, e ela sentia-se no auge da alegria. Ora queria saber como passava ele a vida, e ouvia, transportada, que a empregava a fazer o bem, a cultivar as artes, a penetrar os segredos da natureza, e a aperfeiçoar o espírito. Ora queria saber se a alma de seu pássaro era da mesma natureza que a de seu amado; por que vivera o primeiro cerca de vinte e oito mil anos, ao passo que o último não tinha mais que dezoito ou dezenove. Fazia mil perguntas semelhantes, às quais o pássaro respondia com uma discrição que lhe espicaçava a curiosidade. Afinal o sono lhes fechou os olhos e entregou Formosante à doce ilusão dos sonhos enviados pelos deuses, que ultrapassam às vezes a própria realidade, e que toda a filosofia dos caldeus tem tanto trabalho em interpretar.

Formosante acordou-se muito tarde. Para ela ainda era cedo, quando o pai entrou no seu quarto. O pássaro recebeu Sua Majestade com respeitosa polidez, foi ao seu encontro, ruflou as asas, alongou o pescoço, e voltou para a sua laranjeira. O rei sentou-se no leito da filha, a quem os sonhos haviam tornado ainda mais bela. Sua grande barba branca aproximou-se daquele lindo rosto e, depois de lhe dar dois beijos, ele lhe falou nos seguintes termos:

- Ontem, minha filha, não pudeste achar um marido como eu desejava; no entanto, precisas de um; assim o exige o futuro do Império. Consultei o oráculo, que, como bem sabes, não mente nunca e dirige todos os meus atos. Ele me ordenou que te fizesse correr mundo. É preciso que viajes.

- Ah! Até aos gangáridas, com certeza! - exclamou Formosante, que, enquanto deixava escapar tais palavras, compreendeu a sua tolice. O rei, que nada sabia de geografia, perguntou o que entendia ela por gangáridas. Ela logo achou uma saída. O rei comunicou-lhe que era preciso fazer uma peregrinação; que já nomeara, para a sua comitiva, o decano dos conselheiros de Estado, o esmoler-mor, uma dama de honor, um médico, um boticário, e o seu pássaro, com toda a criadagem necessária. Formosante, que jamais saíra do palácio do rei seu pai, e que, até a chegada dos três reis e de Amazan, levara uma vida muito insípida na etiqueta do fausto e na aparência dos prazeres, ficou encantada com a peregrinação em vista. "Quem sabe - dizia ela baixinho ao seu coração - se os deuses não inspirarão ao meu querido gangárida o mesmo desejo de ir à mesma capela, e se não terei a felicidade de rever o peregrino?" Agradeceu carinhosamente ao pai, dizendo que sempre tivera secreta devoção pelo santo ao qual a enviavam.

Belus ofereceu um excelente almoço a seus hóspedes; só compareceram homens. Era tudo gente que não combinava: reis, príncipes, ministros, pontífices, todos ciumentos uns dos outros, todos a pesarem suas palavras, todos embaraçados com os vizinhos e consigo mesmos. A refeição foi triste, embora bebessem muito. As princesas ficaram nos seus aposentos, ocupadas com a partida. Comeram a sós. Formosante foi em seguida passear pelos jardins com o seu querido pássaro que, para a distrair, voava de árvore em árvore, ostentando a sua soberba cauda e a sua divina plumagem.

O rei do Egito, que estava bastante animado pelo vinho, para não dizer bêbedo, pediu um arco e flechas a um dos pajens. Esse príncipe era na verdade o mais desajeitado arqueiro do seu reino. Quando atirava ao alvo, o lugar onde se estava mais seguro era o ponto que ele visava. Mas o belo pássaro, voando tão rápido como a flecha, apresentou-se por si mesmo ao tiro, e tombou ensangüentado entre os braços de Formosante. O egípcio retirou-se, a rir tolamente. A princesa feria o céu com os gritos, chorava, lanhava as faces e o peito. O pássaro moribundo disse-lhe baixinho: "Queima-me, e não deixes de levar minhas cinzas para a Arábia Feliz, a leste da antiga cidade de Aden ou Éden, e expô-las ao sol sobre uma pequena fogueira de cravo e canela". Dito isto, expirou. Formosante permaneceu por muito tempo sem sentidos, e só voltou a si para romper em soluços. O pai, partilhando da sua dor, e soltando imprecações contra o rei do Egito, não teve dúvida em que aquele caso anunciava um sinistro futuro. Foi logo consultar o oráculo da sua capela. O oráculo respondeu:

Mistura de tudo; morto vivo, infidelidade e constância, perda e ganho, calamidade e ventura. Nem o rei nem seu conselho nada puderam entender daquilo; mas ele afinal estava satisfeito de haver cumprido com os seus deveres religiosos.

Enquanto o rei consultava o oráculo, a princesa, desolada, mandou prestar ao pássaro as honras fúnebres que ele ditara, e resolveu levá-lo para a Arábia, com perigo da própria vida. O pássaro foi queimado em linho incombustível, juntamente com a laranjeira em que pousara. Formosante recolheu-lhe as cinzas em um pequeno vaso de ouro todo cravejado de carbúnculos e brilhantes retirados da boca do leão. Pudesse ela, em vez de cumprir esse fúnebre dever, queimar vivo o detestável rei do Egito! esse era todo o seu desejo. No seu despeito, mandou matar os seus dois crocodilos, os seus dois hipopótamos, as suas duas zebras, os seus dois ratos, e mandou lançar as suas duas múmias no Eufrates; se tivesse à mão o boi Apis, não o teria poupado.

O rei do Egito, furioso com tal afronta, partiu imediatamente para movimentar seus trezentos mil homens. O rei das Índias, vendo partir o seu aliado, regressou no mesmo dia, no firme propósito de juntar seus trezentos mil indianos ao exército egípcio. O rei da Cítia fugiu de noite com a princesa Aldéia, firmemente resolvido a combater por ela à frente de trezentos mil citas, e restituir-lhe a herança de Babilônia, que lhe era devida, por descender do ramo mais antigo.

Por seu lado, a bela Formosante pôs-se a caminho às três horas da madrugada, com a sua caravana de peregrinos, esperando poder ir à Arábia executar os últimos desejos de seu pássaro, e que a justiça dos deuses imortais lhe devolvesse o seu querido Amazan, sem o qual ela já não podia viver.

Assim, ao despertar, o rei da Babilônia não encontrou mais ninguém. "Como terminam as grandes festas! - dizia ele consigo. - E que espantoso vácuo nos deixam na alma, depois de passada a sua animação!" Mas foi acometido de uma cólera verdadeiramente real quando soube que haviam raptado a princesa Aldéia. Deu ordem para que despertassem a todos os seus ministros e se reunisse o conselho. Enquanto os esperava, não deixou de ir consultar o seu oráculo, mas só lhe pôde arrancar estas palavras, tão famosas depois, no universo inteiro: Quando não casam as moças, elas mesmas se casam.

Logo foi expedida ordem de marcharem trezentos mil homens contra o rei dos citas. Eis, pois, deflagrada de todos os lados a mais terrível das guerras e que foi ocasionada pela mais bela festa que já se deu no mundo. A Ásia ia ser assolada por quatro exércitos de trezentos mil combatentes cada um. Bem se vê que a guerra de Tróia, que estarreceu o mundo alguns séculos depois, não passava, em comparação, de um brinquedo de criança; mas deve-se considerar que, na disputa dos troianos, apenas se tratava de uma mulher já velha e muito libertina que se fizera raptar duas vezes, ao passo que ora se tratava de duas moças e um pássaro.

O rei das Índias ia esperar seu exército na grande e magnífica estrada que se dirigia, numa reta, de Babilônia a Caxemira. O rei dos citas corria com Aldéia pela bela estrada que levava ao monte Imaús. Todos esses caminhos desapareceram depois, devido à má administração. O rei do Egito marchara para o ocidente, e costeava o pequeno mar Mediterrâneo, que os ignorantes hebreus chamaram depois o grande mar.

Quanto à bela Formosante, seguia a estrada de Baçorá, bordada de altas palmeiras que forneciam uma sombra eterna e frutas em todas as estações. O templo aonde ia em peregrinação situava-se na própria Baçorá. O santo a quem fora dedicado o templo era mais ou menos à moda, daquele que adoraram depois em Lâmpsaco. Não só conseguia marido para as moças, mas muitas vezes fazia papel de marido. Era o santo mais festejado de toda a Ásia.

Formosante não se preocupava absolutamente com o santo de Baçorá; só invocava o seu caro pastor gangárida, o seu belo Amazan. Contava embarcar em Baçorá para a Arábia, a fim de fazer o que o pássaro lhe ordenara.

Na terceira pousada, mal entrara numa hospedaria onde os seus furriéis lhe haviam preparado tudo, soube que o rei do Egito ali também chegava. Informado, por seus espiões, da marcha da princesa, mudara imediatamente de caminho, seguido de numerosa escolta. Chega; manda colocar sentinelas em todas as portas; entra no quarto da bela Formosante e diz-lhe:

- Jovem, era a ti mesma que eu buscava; fizeste pouco de mim quando eu estava em Babilônia; é justo punir as desdenhosas e as caprichosas: vais ter a amabilidade de cear comigo esta noite; não terás outro leito senão o meu, e eu me conduzirei contigo como bem me aprouver. Formosante compreendeu que não era a mais forte; sabia que o bom senso consiste em conformar-se com a situação; tomou o partido de livrar-se do rei do Egito por meio de uma inocente esperteza; olhou-o com o rabo do olho, o que vários séculos depois se chamou namorar; e eis como lhe falou, com uma modéstia, uma graça, uma doçura, um embaraço e uma multidão de encantos que teriam enlouquecido o mais sábio dos homens e cegado o mais clarividente:

- Confesso, senhor, que sempre baixei os olhos perante vós quando destes ao rei meu pai a honra de ir a seu palácio. Temia o meu coração, temia a minha ingênua simplicidade: temia que meu pai e vossos rivais se apercebessem da preferência que eu vos concedia e tanto merecíeis. Posso agora entregar-me a meus sentimentos. Juro pelo boi Apis, que é, depois de vós, o que mais respeito no mundo, que as vossas propostas me encantaram. Já ceei convosco no palácio de meu pai; e de novo o farei, sem a sua presença; só o que peço é que o vosso esmoler-mor beba conosco; pareceu-me em Babilônia um esplêndido conviva; tenho excelente vinho de Chiraz, quero que ambos o experimentem. Quanto à vossa segunda proposta, é muito tentadora, mas não convém, a uma moça bem nascida, falar em tais coisas; baste-vos saber que eu vos considero como o maior dos reis e o mais amável dos homens. Essa fala virou a cabeça do rei do Egito; concordou em que o esmoler-mor fosse o terceiro à mesa.

- Desejo ainda outro favor - disse-lhe a princesa. - É uma permissão vossa para que o meu boticário venha falar-me; as moças sempre têm certos pequenos incômodos, que demandam certos cuidados, como tonturas, palpitações, cólicas, faltas de ar, em que é preciso pôr certa ordem em certas circunstâncias; numa palavra, tenho urgente necessidade de meu boticário, e espero que não me recusareis essa pequena demonstração de amor.

- Senhorita - respondeu-lhe o rei do Egito, - embora um boticário tenha idéias exatamente opostas às minhas, e o objeto de sua arte seja o contrário do de minha arte, sou bastante complacente para não recusar tão justo pedido. Vou ordenar que ele venha falar-te enquanto se prepara a ceia. Compreendo que devas estar um pouco fatigada da viagem; deves também ter necessidade de uma criada de quarto; podes mandar chamar a que melhor te agrade; aguardarei em seguida as tuas ordens.

Ele retirou-se; chegaram o boticário e a criada de quarto, chamada Irla, na qual a princesa depositava inteira confiança. Ordenou-lhe que mandasse trazer seis garrafas de vinho de Chiraz para a ceia e servisse outras tantas às sentinelas que vigiavam a seus oficiais. Recomendou ao boticário que metesse em todas as garrafas certas drogas da sua farmácia, que faziam dormir vinte e quatro horas, e de que .ele estava sempre munido. Foi estritamente obedecida. Ao cabo de meia hora, voltou o rei com o esmoler-mor: a ceia foi muito alegre; o rei e o sacerdote esvaziaram as seis garrafas e confessaram que não havia um vinho igual no Egito; a camareira teve o cuidado de dar de beber aos criados que haviam servido. Quanto à princesa, absteve-se de beber, dizendo que o seu médico a pusera em regime. Em breve estavam todos adormecidos.

O esmoler do rei do Egito tinha a mais bela barba que pudesse carregar um homem da sua condição. Formosante cortou-a habilmente; depois, mandando-a coser a uma fita, amarrou-a ao próprio queixo, envergou a túnica do sacerdote, sem esquecer as insígnias da sua dignidade, e vestiu a camareira de sacristã da deusa Isis. Tomando, enfim, a urna e as pedras preciosas, saiu da hospedaria por entre os guardas, que dormiam, como o seu senhor. A camareira tivera o cuidado de deixar dois cavalos selados à porta. Não podia a princesa levar consigo nenhum dos oficiais da sua comitiva: pois teriam sido presos pela guarda.

Formosante e Irla passaram por entre as fileiras dos soldados que, tomando a princesa pelo grão-Sacerdote, a chamavam de Meu Reverendíssimo Pai em Deus e lhe pediam a bênção. As duas fugitivas chegam em vinte e quatro horas a Baçorá, antes que o rei houvesse despertado. Deixaram então os disfarces, que poderiam despertar suspeitas. Fretaram imediatamente um navio que as levou, pelo estreito de Ormuz, às belas ribas do Éden, na Arábia Feliz. Desse Éden, cujos jardins eram tão famosos, foi que se fez depois a morada dos justos: foram o modelo dos Campos Elísios, dos jardins das Hespérides e dos das Ilhas Afortunadas; pois, naqueles climas quentes, não imaginam os homens maior beatitude que as sombras e o murmúrio das águas. Viver eternamente com o Ser Supremo, ou ir passear pelo jardim no paraíso, dava no mesmo para os homens, que falam sempre sem entender-se e ainda não puderam ter idéias nítidas nem expressões justas.

Logo que ali se encontrou, o primeiro cuidado da princesa foi prestar ao seu querido pássaro as honras fúnebres que este lhe exigira. Suas belas mãos ergueram uma pira de cravo e canela. Qual não foi a sua surpresa quando, depois de espalhar sobre essa lenha as cinzas do pássaro, a viu acender-se por si mesma! Tudo se consumiu num instante. Só ficou, no lugar das cinzas, um grande ovo, de que viu sair o seu belo pássaro, mais esplêndido do que nunca. Foi o mais belo instante que a princesa experimentou em toda a vida; não havia senão outro que lhe pudesse ser mais caro: ela o desejava, mas não o esperava.

- Bem vejo - disse ela ao pássaro - que és a fênix de que tanto me haviam falado. Estou prestes a morrer de espanto e de alegria. Não acreditava na ressurreição; mas a minha ventura convenceu-me.

- A ressurreição, Alteza - disse-lhe a fênix, - é a coisa mais simples deste mundo. Não é mais surpreendente nascer duas vezes do que uma. Tudo é ressurreição no mundo; as lagartas ressuscitam em borboletas, uma semente ressuscita em árvore; todos os animais, sepultados na terra, ressuscitam em ervas, em plantas, e alimentam outros animais, de que vão constituir em breve uma parte da substância: todas as partículas que compunham os corpos são transformadas em diferentes seres. É verdade que sou o único a quem o poderoso Orosmade concedeu a graça de ressuscitar na sua própria natureza.

Formosante, que, desde o dia em que vira Amazan e a fênix pela primeira vez, passara as horas a espantar-se, disse-lhe:

- Compreendo muito bem que o Ser Supremo tenha podido formar das tuas cinzas uma fênix mais ou menos semelhante a ti; mas, que sejas precisamente o mesmo ser, que tenhas a mesma alma, é coisa que eu não compreendo claramente. Que era feito de tua alma, enquanto eu, te carregava no bolso, após a tua morte?

- O meu Deus, Alteza! Pois não é tão fácil, para o grande Orosmade, continuar a sua ação sobre uma pequena fagulha de mim mesma, como principiar essa ação? Ele me concedera, antes, o sentimento, a memória e o pensamento: ainda mos concede agora; que haja arrancado esse favor a um átomo de fogo elementar oculto em mim, ou ao conjunto de meus órgãos, isso no fundo nada quer dizer: as fênix e os homens sempre ignorarão como se passa a coisa; mas a maior graça que me concedeu o Ser Supremo foi a de fazer-me renascer para a Princesa.

- Minha fênix - tornou a princesa, - considera que as primeiras palavras que me disseste em Babilônia e que eu jamais esquecerei, me encheram da esperança de tornar a ver aquele pastor a quem idolatro; é preciso absolutamente partirmos para a terra dos gangáridas, para que eu o traga de volta a Babilônia.

- É também o meu desejo - disse a fênix. - Não há um momento a perder. É preciso ir buscar Amazan pelo caminho mais curto, isto é pelos ares. Há na Arábia Feliz dois grifos, meus amigos íntimos, que apenas moram a cinqüenta léguas daqui: vou escrever-lhes pelos pombos-correios; eles chegarão antes do anoitecer. Teremos tempo suficiente para mandar fazer um pequeno canapé cômodo, com gavetas, onde colocar as provisões de boca. A princesa estará perfeitamente à vontade nessa viatura, com a sua camareira. Os dois grifos são os mais vigorosos da sua espécie; cada um segurará um dos braços do canapé entre as garras. Mas ainda uma vez: o tempo urge.

Foi imediatamente, com Formosante, encomendar o canapé a um marceneiro seu conhecido. Ficou pronto em quatro horas. Puseram nas gavetas pãezinhos da rainha, biscoitos melhores que os de Babilônia, cidras, ananases, cocos, pistaches e vinho do Éden, que está para o de Chiraz como o de Chiraz está acima do de Suresnes.

O canapé era tão leve quanto cômodo e sólido. Os dois grifos chegaram ao Éden na hora justa. Formosante e Irla acomodaram-se na viatura. Os dois grifos ergueram-na como uma pluma. A fênix ora voava à frente, ora se empoleirava no espaldar. Os dois grifos rumaram para o Ganges com a rapidez de uma flecha que fende os ares. Os viajantes só repousavam alguns momentos à noite, para comer, e para dar um trago aos dois carregadores.

Chegaram enfim à terra dos gangáridas. O coração da princesa palpitava de esperança, de amor e de alegria. A fênix faz parar a viatura defronte à casa de Amazan; pede para lhe falar; mas fazia três horas que ele partira, sem que ninguém soubesse aonde teria ido.

Não há, nem na própria língua dos gangáridas, uma palavra que possa exprimir o desespero de Formosante.

- Ai! Eis o que eu temia - disse a fênix. - As três horas que a princesa passou na hospedaria a caminho de Bacorá, com esse desgraçado rei do Egito, arrebataram talvez para sempre a felicidade de sua vida: tenho muito medo de havermos perdido Amazan irremediavelmente.

Perguntou então aos criados se se podia cumprimentar a senhora mãe de Amazan. Responderam que, havendo morrido o seu esposo na ante-véspera, não recebia ela ninguém. A fênix, que era muito considerada na casa, não deixou de fazer entrar a princesa de Babilônia em um salão cujas paredes eram revestidas de pau de laranjeira com filetes de marfim; os subpastores e subpastoras, em longas túnicas brancas com cintos cor de aurora, serviram-lhe, em cem travessas de simples porcelana, cem iguarias deliciosas, entre as quais não se via nenhum cadáver disfarçado: era arroz, sagu, sêmola, aletria, macarrão, omeletes, ovos com molho branco, queijos, massas de toda espécie, legumes, frutas de um perfume e de um sabor de que não se tem idéia em outros climas; e havia uma profusão de licores refrigerantes, superiores aos melhores vinhos.

Enquanto a princesa comia, estendida num leito de rosas, quatro pavões, felizmente mudos, a abanavam com suas brilhantes asas; duzentos pássaros, cem pastores e cem pastoras lhe deram um concerto de dois coros; os rouxinóis, os canários, as toutinegras, os tentilhões faziam soprano com as pastoras; os pastores faziam o contralto e o baixo: era em tudo a bela e simples natureza. A princesa confessou que, se havia mais magnificência em Babilônia, a natureza era mil vezes mais agradável entre os gangáridas; mas, enquanto lhe ofereciam aquela música tão consoladora e voluptuosa, derramava lágrimas e dizia à sua jovem companheira Irla:

- Esses pastores e pastoras, esses rouxinóis e canários, estão todos amando, enquanto me sinto privada do herói gangárida, digno objeto dos meus mais ternos e impacientes desejos.

Enquanto assim fazia a sua refeição, e admirava, e chorava, dizia a fênix à, mãe de Amazan:

- Senhora, não podeis deixar de ver a princesa de Babilônia; bem sabeis que...

- Sei tudo - disse ela, - até a sua aventura na hospedaria da estrada de Baçorá; um melro me contou tudo esta manhã; e esse melro cruel foi o causante de que meu filho, desesperado, ficasse como louco e abandonasse a casa paterna.

- Não sabeis então - tornou a fênix - que a princesa me ressuscitou?

- Não,, meu filho; pelo melro, sabia eu que estavas morto, o que me deixava inconsolável. Estava tão aflita com essa perda, com a morte de meu marido e a súbita partida de meu filho, que proibira toda e qualquer visita. Mas, já que a princesa de Babilônia me dá a honra de vir visitar-me, faze-a logo entrar; tenho coisas da máxima importância para lhe dizer, e quero que estejas presente.

Dirigiu-se em seguida a um outro salão, onde deveria encontrar-se com a princesa. Não andava com facilidade: era uma dama de cerca de trezentos anos; mas tinha ainda vestígios de beleza e bem se via que, entre os duzentos e trinta e os duzentos e quarenta anos, fora mesmo encantadora. Recebeu Formosante com uma nobreza respeitosa, a que se mesclava um ar de interesse e de dor, e que causou à princesa uma viva impressão.

Formosante lhe apresentou primeiro as condolências pela morte do marido.

- Ah! - exclamou a viúva. - Deveis interessar-vos pela sua perda mais do que pensais.

- Sem dúvida que me sinto abalada - disse Formosante. - Ele era pai de...

A estas palavras, ela pôs-se a chorar:

- Eu não tinha vindo senão por causa dele, e através de muitos perigos. Deixei, por ele, a meu pai e à mais brilhante Corte do universo; fui raptada por um rei do Egito a quem detesto. Escapando a este, atravessei os ares para ver aquele a quem amo; chego, e ele me foge!

As lágrimas e os soluços impediram-na de continuar.

- Alteza - disse-lhe então a mãe, enquanto orei do Egito vos seqüestrava, enquanto ceavam ambos numa hospedaria da estrada de Baçorá, quando as vossas belas mãos lhe serviam vinho de Chiraz, não vos lembrais de ter visto um melro que revoava pela sala?

- É verdade, vós me reavivais a memória; eu não tinha prestado atenção; mas, concentrando-me, bem me lembro que, no momento em que o rei do Egito se erguia da mesa para me dar um beijo, o melro voou pela janela lançando um grito, e não mais reapareceu.

- Ai, Alteza! - suspirou a mãe de Amazan - Eis exatamente a causa das nossas desgraças. O meu filho mandara esse melro informar-se do vosso estado de saúde e de tudo o que se passava em Babilônia; esperava regressar em breve para lançar-se a vossos pés e consagrar-vos a vida. Nem sabeis a que ponto ele vos adora. Todos os gangáridas são amorosos e fiéis; mas o meu filho é o mais apaixonado e o mais constante de todas. O melro vos encontrou numa estalagem, a beber alegremente com o rei do Egito e um maldito sacerdote; ele vos viu enfim dar um terno beijo àquele monarca que matara a fênix e ao qual meu filho tem invencível horror. A vista disso, o melro foi tomado de justa indignação; voou amaldiçoando os vossos funestos amores. Regressou hoje e contou tudo. Mas em que momento, meu Deus! No momento em que meu filho chorava comigo a morte de seu pai e a da fênix, no momento em que ele sabia, por mim, que é vosso primo!

- O céus! Meu primo! Será possível, senhora? E por que aventura? Como? Então sou eu feliz a tal ponto?! E seria tão desgraçada ao mesmo tempo, por havê-lo ofendido?!

- Meu filho é vosso primo - tornou a mãe, - e já vos dou a prova; mas, tornando-vos parente minha, vós me arrancais o filho; ele não poderá sobreviver à dor que lhe causou vosso beijo ao rei do Egito.

- Ah! minha tia - exclamou a bela Formosante, - juro por ele e pelo poderoso Orosmade que aquele beijo funesto, longe de ser criminoso, era a mais forte prova de amor que eu poderia dar a vosso filho. Por causa de Amazan, eu desobedecia a meu pai. Ia, por causa dele, do Eufrates ao Ganges. Caída nas mãos do indigno faraó do Egito, não podia escapar-lhe senão enganando-o. Atestam-no as cinzas e a alma da fênix, que estavam então comigo; ela pode fazer-me justiça. Mas como é que vosso filho, nascido às margens do Ganges, pode ser meu primo, quando minha família reina há tantos séculos nas margens do Eufrates?

- Não sabeis - tornou a venerável gangárida - que o vosso tio-avô Aldéia era rei de Babilônia e que foi destronado pelo pai de Belus?

- Sim, Senhora.

- Sabeis que seu filho Aldéia tivera de seu casamento a princesa Aldéia, criada e educada na vossa Corte. Pois foi esse príncipe que, perseguido por vosso pai, veio refugiar-se em nossa terra, sob um nome suposto; foi ele quem me desposou; e dele tive o príncipe Aldéia-Amazan, o mais belo, o mais forte, o mais corajoso, o mais virtuoso dos mortais, e hoje o mais louco. Foi às festas de Babilônia levado por vossa reputação de beleza: desde esse tempo ele vos idolatra, e eu talvez nunca mais torne a ver o meu querido filho.

Fez então mostrar à princesa todos os títulos da casa dos Aldéias; Formosante mal se dignou olhá-los.

- Ah! senhora! - exclamou. - Acaso a gente examina o que deseja? Meu coração o crê de sobra. Mas onde está Aldéia-Amazan? Onde está o meu parente, o meu amado, o meu rei? Onde está a minha vida? Que caminho tomou? Iria procurá-lo em todos os globos que o Eterno formou e de que ele é o mais belo ornamento. Iria à estréia Canope, a Sheat, a Aldebarã; iria convencê-lo do meu amor e da minha inocência.

A fênix absolveu a princesa do crime que lhe imputara o melro, de haver dado um beijo de amor ao rei do Egito; mas era preciso desenganar Amazan e trazê-lo de volta. Envia pássaros a todas as estradas, põe em campo os unicórnios: vem dizer-lhe afinal que Amazan tomara o caminho da China.

- Pois bem, vamos à China! - exclamou a princesa. - A viagem não é longa; espero trazer vosso filho de volta, dentro em quinze dias, o mais tardar.

A estas palavras, quantas lágrimas de ternura não lançaram a mãe gangárida e a princesa de Babilônia! Quantos abraços! Quantas efusões!

A fênix encomendou imediatamente uma carruagem de cem unicórnios. A mãe forneceu duzentos cavalheiros e deu de presente à princesa, sua sobrinha, alguns milhares dos mais belos diamantes do país. A fênix, aflita com o mal que havia causado a indiscrição do melro, ordenou a expulsão de todos os melros. É desde essa época que não mais se encontram melros à margem do Ganges.