A PRINCESA DA BABILONIA - CAPITULO V

CAPÍTULO V

Em menos de oito dias, os unicórnios conduziram Formosante, Irla e a fênix a Cambalu, capital da China. Era uma cidade maior que Babilônia, e de uma espécie de magnificência completamente diversa. Aqueles novos objetos, aqueles costumes novos, teriam distraído Formosante, se ela se pudesse ocupar de outra coisa que não fosse Amazan.

Logo que o imperador da China soube que a princesa da Babilônia se achava numa das portas da cidade, enviou a seu encontro quatro mil mandarins em trajes de cerimônia; todos se prosternaram diante dela e cada um lhe apresentou uma saudação escrita em caracteres de ouro sobre seda purpúrea. Formosante lhes disse que, se tivesse quatro mil línguas, não deixaria de responder imediatamente a cada um deles; mas, não possuindo mais que uma, pedia-lhes para servir-se da mesma a fim de fazer um agradecimento geral. Os mandarins conduziram-na respeitosamente à presença do Imperador.

Era este o mais justo, mais polido e mais sábio monarca do mundo. Foi ele quem, em primeiro lugar, lavrou um pequeno campo com as suas mãos imperiais, para tornar a agricultura respeitável, ao povo. Foi quem primeiro instituiu prêmios para a virtude. As leis, por toda parte aliás, se restringiam vergonhosamente a punir os crimes. Esse imperador acabava de expulsar de seus Estados um bando de bonzos estrangeiros que tinham vindo dos confins do Ocidente, na insana esperança de forçar toda a China a pensar como eles, e que, sob o pretexto de anunciar verdades, já tinham adquirido riquezas e honrarias. Dissera-lhes, ao expulsá-los, estas palavras textuais, registradas nos anais do império:

Poderíeis fazer aqui tanto mal quanto fizestes alhures: viestes pregar dogmas de intolerância na nação mais tolerante da terra. Mando-vos de volta para nunca me ver forçado a punir-vos. Sereis honrosamente reconduzidos até as minhas fronteiras; ser-vos-á fornecido o necessário para voltardes aos limites do hemisfério de onde partistes. Ide em paz, se puderdes ir em paz, e nunca mais volteis.

Foi com alegria que a princesa de Babilônia soube desse julgamento e dessas palavras; tanto mais certeza tinha de ser recebida na Corte, pois estava muito longe de professar dogmas intolerantes. O imperador da China, jantando a sós com ela, teve a gentileza de banir o embaraço de qualquer etiqueta constrangedora. Ela apresentou-lhe a fênix, que foi muito acariciada pelo imperador e se empoleirou na sua cadeira. Formosante, no fim da refeição, confiou-lhe ingenuamente o motivo de sua viagem, e pediu-lhe que mandasse procurar em Cambalu o belo Amazan, cuja aventura lhe contou, sem nada lhe ocultar da fatal paixão de que se inflamara por aquele jovem herói.

- A quem vindes falar! - exclamou o imperador da China. - Ele deu-me o prazer de vir à Corte. Encantou-me, esse amável Amazan; é verdade que está profundamente aflito; mas isso torna as suas graças ainda mais tocantes. Nenhum de meus favoritos tem mais espírito do que ele; nenhum mandarim togado tem mais vastos conhecimentos; nenhum mandarim de espada tem o ar mais heróico e marcial; a sua extrema juventude dá novo preço a todos os seus talentos: se eu fosse tão desgraçado, tão desamparado do Tien e do Changti para abalançar-me a fazer conquistas, pediria a Amazan que se pusesse à frente de meus exércitos, e estaria certo de triunfar do universo inteiro. É pena que o seu pesar às vezes lhe perturbe o espírito.

- Ah! Senhor - disse-lhe Formosante com ar arrebatado e um tom de dor, de abalo e de censura, - por que não me fizestes cear com ele? Vós me matais; mandai-o convidar agora mesmo.

- Ele partiu esta manhã, senhora, e não disse para que região se dirigiam seus passos.

Formosante voltou-se para a fênix:

- Já. viste, minha fênix - disse ela, - uma moça mais desgraçada do que eu? Mas, Senhor - continuou ela, - como, e por que pôde ele deixar tão repentinamente uma Corte assim refinada como a vossa e na qual me parece que se desejaria passar a vida?

- Eis, Senhora, o que aconteceu. Uma princesa de sangue real, das mais amáveis, apaixonou-se por ele, e marcou-lhe um encontro ao meio-dia; ele partiu ao amanhecer, deixando este bilhete, que muitas lágrimas custou à minha parente:

Bela princesa do sangue da China, mereceu um coração que nunca tenha sido senão vosso; jurei aos deuses imortais só amar a Formosante, princesa de Babilônia, e ensinar-lhe como podemos dominar os desejos, em viagem; teve ela a desgraça de sucumbir com um indigno rei do Egito: sou o mais infeliz dos homens; perdi meu pai e a fênix, e a esperança de ser amado por Formosante; deixei minha mãe aflita e minha pátria, sem poder mais viver um só momento no lugar onde soube que Formosante amava a outro que não eu; jurei percorrer o mundo e ser fiel. Vós me desprezaríeis, e os deuses me puniriam, se eu violasse meu juramento; tomai um noivo, Senhora, e que possais ter uma fidelidade igual à minha.

- Ah! deixai comigo essa admirável carta - disse a bela Formosante, - ela será o meu consolo; sinto-me feliz no meu infortúnio. Amazan me ama; Amazan renuncia, por mim, à posse das princesas da China; só ele, no mundo, é capaz de tal vitória; dá-me um grande exemplo; mas bem sabe a fênix que eu não precisava disso; é muito cruel ver-se a gente privada de quem ama só por causa do mais inocente dos beijos dado por pura fidelidade. Mas afinal, aonde foi ele? Que caminho tomou? Dignai-vos dizer-me, e eu parto.

O Imperador da China respondeu que, pelos relatos que lhe haviam trazido, seguira Amazan uma estrada que levava para a Cítia. Em seguida foram atrelados os unicórnios, e a princesa, depois dos mais amáveis cumprimentos, despediu-se do imperador, com a fênix, a camareira Irla, e toda a comitiva.

Logo ao chegar à Cítia, viu, mais do que nunca, como os homens e os governos diferem, e diferirão sempre, até que um dia um povo mais esclarecido que os outros comunique a luz, de vizinho para vizinho, após mil séculos de trevas, e quando se encontrem, em climas bárbaros, almas heróicas que tenham a força e perseverança de transformar os brutos em homens.

Nenhuma cidade havia na Cítia e, por conseguinte, nada de artes agradáveis. Não se viam senão vastas planícies, e povos inteiros debaixo de tendas ou em cima de carros. Tal aspecto causava terror. Formosante Indagou em que tenda ou em que carreta se alojava o rei. Disseram-lhe que, oito dias antes, se pusera em marcha à frente de trezentos mil cavaleiros, para ir ao encontro do rei de Babilônia, a quem havia raptado a sobrinha, a bela princesa Aldéia.

- Raptou minha prima?! - exclamou Formosante. - Por essa nova aventura eu não esperava. Como! A minha prima, que se dava por muito feliz em me fazer a corte, se tornou rainha, e eu ainda não me casei!

Fez-se conduzir imediatamente às tendas da rainha.

Seu inesperado encontro naqueles remotos climas, as coisas singulares que tinham mutuamente a contar-se, deram à sua entrevista um encanto que as fez esquecer que jamais se haviam estimado; reviram-se com transporte; uma suave ilusão tomou o lugar da verdadeira ternura; beijaram-se chorando; e até cordialidade e franqueza houve entre ambas, uma vez que a entrevista não se realizava num palácio.

Aldéia reconheceu a fênix e a confidente Irla; presenteou peles de zibelina à prima, que, por sua vez, a presenteou com diamantes. Falaram da guerra que os dois reis empreendiam; deploraram a condição dos homens, que os monarcas, por fantasia, mandam entredegolar-se, devido a diferenças que dois homens sensatos poderiam solucionar numa hora; mas falaram principalmente do belo estrangeiro vencedor dos leões, doador dos maiores diamantes do universo, autor dos madrigais, possuidor da fênix, e tornado, por causa de um melro, o mais infeliz dos homens.

- É o meu querido irmão - dizia Aldéia.

- É o meu amado! - exclamava Formosante. Sem dúvida o viste, talvez ainda esteja aqui, pois sabe que é teu irmão e não haveria de deixar-te bruscamente, como deixou ao rei da China.

- Se. eu o vi, meu Deus! - tornou Aldéia. - Passou quatro dias inteiros comigo. Ah! minha prima, como o meu irmão é digno de lástima! Uma falsa história o tornou inteiramente louco; corre o mundo sem saber aonde vai. Imagina tu que levou a loucura a ponto de recusar os favores da mais bela cita de toda a Cítia! Partiu ontem, depois de lhe haver escrito uma carta que a deixou desesperada. Ele foi à terra dos cimérios.

- Louvado seja Deus! - exclamou Formosante. - Mais outra recusa em meu favor! Minha felicidade ultrapassou minha esperança, como minha desgraça ultrapassou a todos os meus temores. Manda-me entregar essa encantadora carta. Que eu parta, e o siga, com as mãos cheias de seus sacrifícios. Adeus, minha prima: Amazan está entre os cimérios, vou voando para lá.

Aldéia achou que a princesa sua prima estava ainda mais louca que o seu irmão Amazan. Mas como já conhecia por experiência própria os ataques dessa epidemia, como deixara as delicias e magnificências de Babilônia pelo rei dos citas, como as mulheres sempre se interessam pelas loucuras de que o amor é causa, enterneceu-se verdadeiramente com o caso de Formosante, desejou-lhe feliz viagem, e prometeu servir a sua paixão, se ela tivesse a felicidade de tornar a ver Amazan.