A PRINCESA DA BABILONIA - CAPITULO VIII

CAPÍTULO VIII

Entrementes, já ia Amazan, a caminho da capital de Albion, na sua carruagem de seis unicórnios, e pensava na sua princesa. Avistou uma equipagem derribada num fosso; os criados se haviam afastado em busca de socorro; o patrão permanecia tranqüilamente em seu carro, sem demonstrar a mínima impaciência, e divertindo-se em fumar: pois então se fumava; chamava-se milorde What-then, o que significa mais ou menos milorde Que Importa, na língua para a qual traduzo estas memórias.

Amazan precipitou-se para auxiliá-lo; ergueu sozinho o carro, tão superior era sua força à do comum dos homens. Milorde Que Importa contentou-se em dizer: "Isso é que é força". Havendo acorrido alguns rústicos da vizinhança, zangaram-se por haver sido chamados inutilmente, descarregando a cólera no estrangeiro; ameaçaram-no, chamando-o de cão estrangeiro, e quiseram bater-lhe.

Amazan segurou dois deles em cada mão e arremessou-os a vinte passos de distância; os outros criaram-lhe respeito, cumprimentaram-no e pediram-lhe algum troco para beber:

Amazan lhes deu mais dinheiro do que eles jamais viram em toda a vida. Milorde Que Importa disse-lhe:

- Estimo-o; venha jantar comigo na minha casa de campo, que só fica a três milhas daqui. Subiu na carruagem de Amazan, porque a sua ficara desarranjada com o choque.

Após um quarto de hora de silêncio, fitou um momento Amazan e disse-lhe: How d'ye do?, literalmente: Como vos fazeis fazer?, e na língua do tradutor: Como passa o senhor? Depois acrescentou: "O senhor tem ai seis bonitos unicórnios" e recomeçou a fumar.

O viajante disse que os seis unicórnios estavam à sua disposição; que vinha com ele do país dos gangáridas; e aproveitou a ocasião para falar da princesa de Babilônia e daquele beijo fatal que ela dera no rei do Egito: ao que o outro não replicou absolutamente nada, pouco se lhe dando que houvesse no mundo um rei do Egito e uma princesa de Babilônia. Esteve ainda um quarto de hora sem dizer coisa alguma; depois tornou a perguntar ao companheiro como ele se fazia e se comiam bom roast-beef. O viajante respondeu-lhe com a habitual polidez que nas margens do Ganges ninguém comia seus irmãos. Explicou-lhe o sistema que foi, depois de tantos séculos, o de Pitágoras, de Pórfiro, de Jâmblico, com o que o milorde adormeceu e não fez mais que um sono até chegarem à sua casa.

Tinha ele uma mulher jovem e encantadora, a quem a natureza dera uma alma tão viva e sensível quanto a do marido era indiferente. Vários senhores albionenses tinham ido jantar com ela naquele dia. Havia caracteres de toda espécie; pois como o pais quase nunca fora governado a não ser por estrangeiros, as famílias vindas com esses príncipes tinham quase todas trazido costumes diferentes. Havia na companhia pessoas muito amáveis, outras de espírito superior, outras de profundo saber.

A dona da casa nada tinha desse ar postiço e esquerdo, dessa rigidez, desse falso pudor que censuravam então nas jovens de Albion; não ocultava, numa atitude desdenhosa e num silêncio afetado, a esterilidade de suas idéias e o humilhante embaraço de não ter nada que dizer: não havia mulher mais insinuante. Recebeu Amazan com a polidez e graça que lhe eram naturais. A extrema beleza daquele estrangeiro, e a súbita comparação que fez entre ele e seu marido, logo a abalaram sensivelmente.

Foram para a mesa. Fez Amazan sentar-se a seu lado e serviu-lhe pudins de toda espécie, pois soubera dele que os gangáridas não se alimentavam de nada que houvesse recebido dos deuses o dom celestial da vida. Sua beleza, sua força, os costumes dos gangáridas, o progresso das artes, a religião e o governo, foram assunto de uma conversação tão agradável quão instrutiva durante a refeição, que durou até. a noite, e durante a qual milorde Que Importa bebeu muito e não disse palavra.

Após o jantar, enquanto milady servia o chá e devorava o jovem com os olhos, conversava este com um membro do parlamento, pois é sabido que já então havia um parlamento e que se chamava Wittenagemot, o que significa assembléia dos pessoas de espírito. Amazan informava-se da constituição, dos usos e costumes, das leis, das forças, das artes, que tão recomendável tornavam aquele país; e o referido senhor falava-lhe nos seguintes termos:

- Por muito tempo andamos inteiramente nus, embora o clima não seja quente. Durante muito tempo fomos tratados como escravos por gente vinda da antiga terra de Saturno, regada pelas águas do Tibre. Mas a nós mesmos temos causado maiores males do que os sofremos da parte de nossos primeiros vencedores. Um de nossos reis levou a baixeza a ponto de se declarar súdito de um sacerdote que também morava à margem do Tibre, e a quem chamavam o Velho das Sete Colinas; de tal modo foi destino dessas sete montanhas dominarem por muito tempo uma grande parte da Europa, habitada então por brutos.

Após. esses tempos de aviltamento, vieram séculos de ferocidade e anarquia. A nossa terra, mais tempestuosa que os mares que a cercam, foi sacudida e ensangüentada por nossas discórdias. Vários testas-coroadas pereceram no último suplício. Mais de cem príncipes do sangue dos reis acabaram seus dias no cadafalso. Arrancaram o coração a todos os seus adeptos e bateram-lhes com ele nas faces. Ao carrasco é que competia escrever a história da nossa ilha, pois fora ele quem terminara todas as grandes questões.

Não faz muito que, para cúmulo do horror, algumas pessoas de manto negro e outros que usavam uma camisa branca por cima da jaqueta foram mordidas por cães raivosos e acabaram comunicando a raiva à nação inteira. Todos os cidadãos foram ou assassinos ou vitimas, ou carrascos ou supliciados, ou depredadores ou escravos, em nome do céu e em busca do Senhor. Quem diria que desse abismo temeroso, desse caos de dissenções, de atrocidades, de, ignorância e de fanatismo tenha resultado talvez o mais perfeito governo que hoje existe no mundo? Um rei venerado e rico, todo poderoso para fazer o bem, impotente para fazer o mal, está à frente de uma nação livre, guerreira, comerciante e esclarecida. Os grandes de um lado, e os representantes das cidades de outro, compartilham da legislação com o monarca.

Vira-se, por singular fatalidade, a desordem, as guerras civis, a anarquia e a pobreza assolarem o país quando os reis exerciam o poder arbitrário. A tranqüilidade, a riqueza, a felicidade pública, só reinaram entre nós quando os reis reconheceram que não eram absolutos. Tudo estava subvertido quando disputavam sobre coisas ininteligíveis; tudo entrou em ordem depois que as desprezaram. Nossas frotas vitoriosas levam a nossa glória a todos os mares, e as leis põem em segurança as nossas fortunas; jamais um juiz as pode interpretar arbitrariamente; jamais se dá uma sentença que não seja motivada. Puniríamos como assassinos os juizes que ousassem condenar um cidadão à morte sem invocar os testemunhos que o acusam e a lei que o condena.

E verdade que há sempre, entre nós, dois partidos que se combatem com a pena e com intrigas; mas também se reúnem sempre que se trata de pegar em armas para defender a pátria e a liberdade. Esses dois partidos vigiam um ao outro; impedem-se mutuamente de violar o sagrado depósito das leis; odeiam-se, mas amam o Estado: são amantes ciumentos que servem à porfia a mesma amante.

Com o mesmo espírito que nos fez conhecer e sustentar os direitos da natureza humana, elevamos as ciências ao mais alto ponto a que possam chegar entre os homens. Os vossos egípcios, que passam por tão grandes mecânicos; os vossos hindus, a quem julgam tão grandes filósofos; os vossos babilônios, que se vangloriam de haver observado os astros durante quatrocentos e trinta mil anos; os gregos, que escreveram tantas frases e tão poucas coisas, não sabem precisamente nada em comparação com os nossos menores colegiais, que estudaram as descobertas de nossos grandes mestres. Arrancamos mais segredos à natureza no espaço de cem anos do que os descobriu o gênero humano na multidão dos séculos.

Eis na verdade o estado em que nos achamos. Não lhe ocultei nem o bem, nem o mal, nem os nossos opróbrios, nem a nossa glória; e nada exagerei.

Amazan, a tais palavras, sentiu-se penetrado do desejo de se instruir naquelas sublimes ciências de que lhe falavam; e se a sua paixão pela princesa de Babilônia, o seu filial respeito à mãe, a quem deixara, e o amor à pátria, não lhe houvessem falado fortemente ao coração despedaçado, desejaria passar a vida na ilha de Albion. Mas aquele desgraçado beijo da sua princesa para o rei do Egito não lhe deixava suficiente liberdade de espírito para estudar as altas ciências.

- Confesso - disse ele - que, tendo-me imposto a lei de correr mundo e evitar-me a mim mesmo, teria curiosidade de ver essa antiga terra de Saturno, esse povo do Tibre e das sete montanhas, a quem outrora obedecestes; deve ser, sem dúvida, o primeiro povo da terra.

- Aconselho-o a fazer essa viagem - disse o albionense - se aprecia a música e a pintura. Nós próprios vamos seguidamente levar o nosso tédio às sete montanhas. Mas o amigo há de ficar muito espantado quando vir os descendentes de nossos vencedores.

A conversação foi longa. O belo Amazan, embora tivesse o cérebro um tanto perturbado, falava com tal graça, tão tocante era a sua voz, tão nobre e amável a sua atitude, que a dona da casa não pôde deixar, por sua vez, de conversar a sós com ele. Enquanto lhe falava, apertava-lhe ternamente a mão, e fitava-o com olhos úmidos e brilhantes que acordavam os desejos em todas as molas vitais. Reteve-o para a ceia e a pousada. Cada instante, cada palavra, cada olhar mais inflamavam a paixão da dama. Logo que todos se recolheram, escreveu-lhe um bilhetinho, esperando que ele fosse fazer-lhe a corte no leito, enquanto milorde Que Importa dormia no seu. Amazan teve ainda coragem de resistir, tal o maravilhoso efeito que produz um grão de loucura numa alma forte e profundamente atingida.

Amazan, segundo o seu costume, escreveu à dama uma resposta respeitosa, em que alegava a santidade do seu juramento e a estrita obrigação em que se achava de ensinar a princesa de Babilônia a dominar as suas paixões. Depois mandou atrelar os unicórnios e regressou à Batávia, deixando todos encantados com ele e a dona da casa desesperada. No seu desespero, esqueceu-se ela de guardar a carta de Amazan; milorde Que Importa leu-a na manhã seguinte. "Quanta baboseira!" - disse ele, dando de ombros, e foi à caça da raposa com alguns bêbedos da vizinhança.

Amazan já navegava em alto mar, munido de uma carta geográfica que lhe presenteara o sábio albionense com quem conversara em casa de milorde Que Importa. Via com surpresa uma grande parte da terra sobre uma folha de papel. Seus olhos e sua imaginação perdiam-se naquele pequeno espaço; olhava o. Reno, o Danúbio, os Alpes do Tirol, designados então por outros nomes, e todos os países por onde devia passar antes de chegar à cidade das sete montanhas; mas principalmente olhava para a região dos gangáridas, para Babilônia, onde vira a sua querida princesa, e para a fatal Baçorá, onde ela beijara o rei do Egito. Suspirava, vertia lágrimas; mas reconhecia que o albionense que lhe fizera presente do universo em miniatura não deixava de ter razão quando afirmava que havia mil vezes mais instrução às margens do Tâmisa do que às margens do Nilo, do Eufrates e do Ganges.

Enquanto voltava ele para Batávia, corria Formosante para Albion com os seus dois navios, que velejavam a todo o pano. O de Amazan e o da princesa cruzaram-se, quase que se tocaram: os dois enamorados estavam perto um do outro e não podiam suspeitá-lo. Ah, se o soubessem! Mas não o permitiu o imperioso destino.