A PRINCESA DA BABILONIA - CAPITULO IX

CAPÍTULO IX

Logo que desembarcou no solo raso e lamacento da Batávia, Amazan partiu como um raio para a cidade das sete montanhas. Teve de atravessar a parte meridional da Germânia. De quatro em quatro milhas, topava com um príncipe e uma princesa, aias e mendigos. Espantava-se das galanterias que aquelas damas e aias lhe faziam por toda parte, com a boa fé germânica; e só lhes respondia com modestas recusas. Depois de franquear os Alpes, atravessou o mar de Dalmácia, e desembarcou numa cidade que em nada se parecia com o que vira até então. O mar formava as ruas, as casas eram construídas n'água. As poucas praças públicas que ornavam aquela cidade estavam cheias de homens e mulheres que tinham um duplo rosto, o que a natureza lhes dera, e um rosto de cartão mal pintado que aplicavam por cima; de maneira que a nação parecia composta de espectros. Os recém-chegados começavam por comprar um rosto, como em outros lugares se adquire um barrete ou um par de sapatos. Amazan desprezou essa moda contra a natureza; apresentou-se tal como era. Havia na cidade doze mil raparigas registradas na escrita da república: raparigas úteis ao Estado, encarregadas do mais vantajoso e agradável comércio que já enriqueceu uma nação. Os negociantes comuns, com grandes gastos e riscos, enviavam estofos para o Oriente; aquelas belas negociantes faziam, sem o mínimo risco, um sempre renovado tráfico de seus encantos. Vieram todas apresentar-se ao belo Amazan e oferecer-lhe a escolha. Ele escapou-se o mais depressa possível, pronunciando o nome da incomparável princesa de Babilônia e jurando pelos deuses imortais que ela era mais linda que todas as doze mil raparigas venezianas. "Sublime traidora - exclamava ele nos seus transportes, - eu te ensinarei a seres fiel!"

Afinal, as ondas amarelas do Tibre, pântanos empestados, habitantes macilentos, descarnados e raros, cobertos de velhos mantos esburacados que entremostravam a pele seca e curtida, se lhe apresentaram aos olhos, anunciando-lhe que se achava às portas da cidade das sete montanhas, aquela cidade de heróis e legisladores que haviam conquistado e civilizado grande parte do mundo.

Tinha imaginado que veria à porta triunfal quinhentos batalhões comandados por heróis e, no Senado, uma assembléia de semideuses ditando leis à terra; como único e todo exército, achou umas três dúzias de marotos montando guarda com um parassol, com certeza por modo de se queimarem. Penetrando num templo que lhe pareceu muito belo, mas menos que o de Babilônia, ficou muito surpreendido ao ouvir uma música executada por homens que tinham voz de mulher.

- Que esquisito país esta antiga terra de Saturno! - disse ele. - Vi uma cidade onde ninguém tinha o próprio rosto, e agora vejo outra onde os homens não têm nem a respectiva voz nem as respectivas barbas.

Disseram-lhe que aqueles cantores não eram mais homens, que os haviam despojado de sua virilidade a fim de que mais agradavelmente entoassem loas a uma prodigiosa quantidade de pessoas meritórias. Amazan nada compreendeu. Os referidos senhores pediram-lhe que cantasse; ele cantou uma canção gangárida com a sua graça ordinária. Tinha uma bela voz de barítono.

- Ah! Monsignor - disseram eles, - que delicioso soprano não daria! Ah! se...

- Se o quê? Que querem dizer?

- Ah, Monsignor!

- E daí?

- Se Monsignor não tivesse barba!

Explicaram-lhe então muito divertidamente e com gestos muito cômicos, segundo o seu costume, de que coisa se tratava. Amazan ficou perplexo: "Tenho viajado - disse ele, - mas nunca ouvira falar de tal fantasia".

Depois de cantarem bastante, o Velho das Sete Colinas chegou, em pomposo cortejo, à porta do templo; cortou o ar em quatro com o polegar erguido, dois dedos estendidos e os dois outros dobrados, dizendo estas palavras em uma língua que ninguém mais falava. À cidade e ao universo. O gangárida não conseguia compreender que dois dedos pudessem alcançar tão longe.

Viu logo desfilar toda a corte do senhor do mundo: compunha-se de graves personagens, uns de vermelho, outros de violeta; quase todos fitavam o belo Amazan com olhos dengosos; faziam-lhe reverências e diziam entre si: San Martino, che bel ragazzo! San Pancratio, che bel fanciullo!

Os ardentes cujo ofício consistia em mostrar aos estrangeiros as curiosidades da cidade, empenharam-se em fazê-lo ver construções onde um arrieiro não desejaria passar a noite, mas que tinham sido outrora dignos monumentos da grandeza de um povo-rei. Viu ainda quadros de duzentos anos e estátuas de mais de vinte séculos, que lhe pareceram obras-primas.

- Ainda fazem obras assim?

- Não, Excelência - respondeu-lhe um dos guias, - mas desprezamos o resto do mundo porque conservamos essas raridades. Somos uma espécie de adelos que nos orgulhamos das velhas roupas que ficaram em nosso estabelecimento. Amazan mostrou desejo de ver o palácio do príncipe; levaram-no até lá. Viu homens de violeta que contavam o dinheiro das rendas do Estado: tanto de uma terra situada à margem do Danúbio, tanto de outra à margem do Loire, ou do Guadalquivir, ou do Vístula.

- Oh! Oh! - exclamou Amazan, após haver consultado a sua carta geográfica, - o seu senhor possui então toda a Europa, como esses antigos heróis das sete montanhas?

- Deve possuir o universo inteiro, por direito divino - respondeu-lhe um dos violetas, - e até houve tempo em que os seus predecessores se aproximaram da monarquia universal; mas os seus sucessores têm hoje a bondade de contentar-se com algum dinheiro que os reis seus súditos lhes pagam em forma de tributo.

- O seu senhor é então, de fato, o rei dos reis? Não é esse o seu título?

- Não, Excelência, o seu título é servo dos servos; é originariamente pescador e porteiro, e eis por que os emblemas da sua dignidade são chaves e redes; mas continua dando ordens a todos os reis. Não faz muito, enviou cento e um mandamentos a um rei do país dos celtas, e o rei obedeceu.

- O seu pescador - disse Amazan - enviou então quinhentos ou seiscentos mil homens para fazer executar as suas cento e uma disposições?

- De forma alguma, Excelência; o nosso santo senhor não é suficientemente rico para pagar dez mil soldados; mas dispõe de quatrocentos a quinhentos mil profetas divinos distribuídos pelos outros países. Esses profetas de todas as cores são, como é razoável, alimentados à custa do povo de cada nação; anunciam da parte do céu que o meu senhor, com as suas chaves, pode abrir e fechar todos os cadeados, e principalmente os dos cofres fortes. Um padre normando, que tinha junto ao rei de que lhe falo o cargo de confidente, convenceu-o de que devia obedecer, sem tugir nem mugir, às cento e uma deliberações de meu senhor; pois é bom saber que uma das prerrogativas do Velho das Sete Colinas é a de ter sempre razão, seja falando, seja escrevendo.

- Sim senhor! Que homem mais singular! - exclamou Amazan. - Teria curiosidade de jantar com ele. - Ainda que Vossa Excelência fosse rei, não poderia comer à sua mesa; o mais que ele poderia fazer pelo senhor seria mandar servir-lhe uma a seu lado, menor e mais baixa que a sua própria. Mas, se quiser ter a honra de lhe falar, solicitarei audiência para o senhor, mediante a buona mancia que o senhor terá a bondade de dar-me.

- Com muito gosto - respondeu o gangárida.

O violeta inclinou-se.

- Eu o introduzirei amanhã - disse ele. - O senhor fará três genuflexões e beijará os pés do Velho das Sete Colinas.

- A tais palavras, Amazan soltou tão prodigiosas gargalhadas que quase sufocou; saiu segurando as ilhargas e riu até as lágrimas durante todo o caminho para a hospedaria, onde riu ainda por muito tempo.

A mesa, apresentaram-se vinte homens sem barba e vinte violinos, que lhe deram um concerto. Foi cortejado o resto do dia pelos senhores mais importantes da cidade; fizeram-lhe propostas ainda mais esquisitas do que a de beijar os pés do Velho das Sete Colinas. Como era extremamente polido, julgou a princípio que aqueles senhores o tomavam por uma dama, e os advertiu de seu engano com a mais circunspecta lisura. Mas, sendo assediado um pouco vivamente por dois ou três dos mais decididos violetas, arremessou-os pela janela, sem julgar fazer grande sacrifício à bela Formosante. Deixou o mais depressa possível aquela cidade dos senhores do mundo, onde se tinha de beijar um velho no artelho, como se a sua face estivesse no pé, e onde só se abordavam os jovens com cerimônias ainda mais estranhas.