A PRINCESA DA BABILONIA - CAP X

CAPÍTULO X

De província em província, sempre repelindo provocações de toda espécie, sempre fiel à princesa de Babilônia, sempre em cólera contra o rei do Egito, chegou aquele modelo de constância à nova capital das Gálias. Passara esta cidade, como tantas outras, por todos os graus da barbárie, da ignorância, da tolice e da miséria. O seu primeiro nome fora lama e excremento; depois tomara o de Isis, do culto de Isis, que chegara até ela. Seu primeiro senado fora uma companhia de barqueiros. Estivera por muito tempo escravizada aos heróis depredadores das sete montanhas; e, alguns séculos depois, outros heróis salteadores, vindos da margem ulterior do Reno, se haviam apoderado de seu pequeno solo.

O tempo, que transforma tudo, fizera dela uma cidade cuja metade era muito nobre e agradável, e a outra um pouco grosseira e ridícula: eram os atributos de seus habitantes. Havia no seu recinto cerca de cem mil pessoas pelo menos que não tinham nada que fazer senão jogar e divertir-se. Esse povo de ociosos julgava as artes que os outros cultivavam. Nada sabiam do que se passava na Corte; embora ficasse esta apenas a quatro escassas milhas dali, era como se estivesse pelo menos a umas seiscentas milhas. As doçuras da sociedade, a alegria, a frivolidade, eram o seu único e importante negócio: governavam-nos como a crianças a quem se enche de brinquedos para as impedir de chorar. Se lhes falavam dos horrores que, dois séculos antes, haviam desolado a sua pátria e dos espantosos dias em que metade da nação massacrava a outra por causa de sofismas, diziam que na verdade aquilo não estava direito; e depois punham-se a rir e a cantar.

Quanto mais corteses, divertidos e amáveis se mostravam os ociosos, tanto mais triste era o contraste que se observava entre eles e os ocupados.

Havia entre esses ocupados, ou que pretendiam sê-lo, um bando de sombrios fanáticos, meio absurdos, meio velhacos, cujo simples aspecto contristava a terra, e que a teriam abalado, se pudessem, para conseguir um pouco de consideração. Mas a nação dos ociosos, dançando e cantando, fazia-os entrar nas suas cavernas, como os pássaros obrigam as corujas a voltar para o esconderijo das ruínas.

Outros ocupados, em menor número, eram zeladores de antigas usanças bárbaras contra as quais bradava a natureza; não consultavam senão os seus registros roídos de traças. Se ali encontravam algum costume Insensato e horrível, consideravam-no como uma lei sagrada. Devido a esse covarde hábito de não ousarem pensar por si mesmos, e de haurirem suas idéias nos destroços dos tempos em que não se pensava, é que, na cidade dos prazeres, ainda existiam costumes atrozes. É por esse motivo que não havia nenhuma proporção entre os delitos e as penas. Faziam às vezes um inocente sofrer mil mortes para obrigá-lo a confessar um crime que não havia cometido. Puniam uma leviandade de rapaz como teriam

(36 of 46) [03/07/2001 15:50:06

punido um envenenamento os um parricídio. Os ociosos lançavam gritos lancinantes e no dia seguinte não pensavam mais no caso e só falavam em novas modas.

Esse povo vira escoar um século inteiro durante o qual as belas-artes se elevaram a um grau de perfeição que jamais se ousaria esperar; os estrangeiros vinham então, como a Babilônia, admirar os grandes monumentos de arquitetura, os prodígios dos jardins, os sublimes esforços da escultura e da pintura. Encantavam-se com uma música que ia direito à alma sem espantar os ouvidos.

A verdadeira poesia, isto é, aquela que é natural e harmoniosa, aquela que tanto fala ao coração como ao espírito, só a conheceu a nação naquele venturoso século. Novos gêneros de eloqüência ostentaram sublimes belezas. Os teatros, sobretudo, ecoaram de obras-primas de que nenhum povo jamais se aproximou. O bom-gosto, enfim, se espalhou por todas as profissões, a tal ponto que houve bons escritores até mesmo entre os druidas.

Tantos louros, que se haviam erguido até as nuvens, em breve secaram numa terra exausta. Não restou mais que um insignificante número, cujas folhas eram de um verde pálido e moribundo. A decadência foi produzida pela facilidade de fazer e a preguiça de fazer bem, pela saciedade do belo e o gosto do excêntrico. A vaidade protegeu artistas que faziam voltar os tempos da barbárie; e essa mesma vaidade, perseguindo os verdadeiros talentos, forçou-os a deixar a pátria; os zangãos fizeram desaparecer as abelhas.

Quase que não havendo verdadeiras artes, quase não havia gênio; todo o mérito do século passado; o borrador das paredes de uma taverna criticava sapientemente os quadros dos grandes pintores; os borradores de papel desfiguravam as obras dos grandes escritores. A ignorância e o mau gosto tinham outros borradores a seu serviço; repetiam-se as mesmas coisas em cem volumes, sob títulos diferentes. Tudo era ou dicionário ou brochura. Um gazeteiro druida escrevia duas vezes por semana os anais obscuros de alguns energúmenos ignorados da nação e prodígios celestes operados em águas-furtadas por pequenos maltrapilhos; outros ex-druidas, vestidos de negro, prestes a morrer de raiva e de fome, queixavam-se em cem escritos de que não mais lhes permitissem enganar os homens, e que deixassem esse direito a bodes vestidos de cinzento. Alguns arquidruidas imprimiam libelos difamatórios.

Amazan nada sabia disso tudo; e, mesmo que o soubesse, pouco lhe importaria, tão ocupado tinha o espírito com a princesa de Babilônia, o rei do Egito, e o seu inviolável juramento de desprezar as faceirices das damas, em qualquer país onde o sofrimento lhe conduzisse os passos.

Todo o populacho leviano, ignorante, e sempre exagerado nessa curiosidade peculiar ao gênero humano, se comprimiu por muito tempo em torno dos seus unicórnios; as mulheres, mais sensatas, forçaram-lhe as portas da moradia para contemplar a sua pessoa.

Testemunhou, no princípio, a seu hospedeiro, desejos de ir à Corte; mas alguns ociosos da boa vida, que ali se encontravam por acaso, lhe disseram que isso passara de moda, que os tempos eram outros e só havia prazeres na cidade. Na mesma noite, recebeu convite para cear em casa de uma dama cujo espírito e talentos eram conhecidos fora de sua pátria, e que tinha viajado em alguns países por onde Amazan passara. Apreciou muito aquela dama e a sociedade reunida em seus salões. A liberdade era ali decente, a alegria não era ruidosa, a ciência nada tinha de desgostante, nem o espírito nada de afetado. Viu que o nome de boa sociedade não é um nome vão, embora seja muitas vezes usurpado. No dia seguinte jantou numa sociedade não menos amável, mas muito mais voluptuosa. Quanto mais satisfeito estava com os convivas, tanto mais se agradavam dele. Sentia a alma abrandar e dissolver-se como os arômatas de seu país se fundem suavemente a um fogo moderado, exalando-se em perfumes deliciosos.

Após o jantar, levaram-no a um espetáculo encantador, condenado pelos druidas, porque lhes roubava o auditório de que eram mais ciumentos. Esse espetáculo era um conjunto de versos agradáveis, de cantos deliciosos, de danças que exprimiam os movimentos da alma, e de perspectivas que encantavam os olhos, iludindo-os. Esse gênero de espetáculo, que reunia tantos gêneros, era conhecido sob um nome estrangeiro: chamava-se ópera, o que significava outrora na língua das sete montanhas trabalho, cuidado, ocupação, indústria, empresa, negócio.

Aquele negócio o encantou. Uma rapariga, sobretudo, fascinou-o com a sua voz melodiosa e as graças que a acompanhavam; essa rapariga de negócio foi-lhe apresentada após o espetáculo por seus novos amigos. Ele lhe fez presente de um punhado de diamantes. Tão reconhecida lhe ficou a rapariga que não o pôde deixar no resto da noite. Ceou com ela, e durante a ceia, esqueceu a sua sobriedade; e, após a ceia, esqueceu o seu juramento de se conservar sempre insensível à beleza e inexorável ante as coqueterias. Que exemplo da fraqueza humana!

A bela princesa de Babilônia chegava então com a fênix, a sua camareira Irla, e seus duzentos cavaleiros gangáridas montados em seus unicórnios. Foi preciso esperar muito até que abrissem as portas. Ela perguntou primeiro se o mais belo, o mais corajoso, o mais inteligente e o mais, fiel dos homens ainda não havia chegado àquela cidade. Os magistrados logo compreenderam que queria referir-se a Amazan. Fez-se conduzir onde ele se achava hospedado; entrou, com o coração palpitante de amor: toda a sua alma estava penetrada da inexprimível alegria de tornar a ver enfim, na pessoa do bem-amado, o modelo da constância. Nada a pôde impedir de entrar no seu quarto; os cortinados estavam abertos: ela viu o belo Amazan adormecido entre os braços de uma linda morena. Tinham ambos grande necessidade de repouso.

Formosante lançou um grito de dor que ecoou por toda a casa, mas que não pôde despertar nem a seu primo, nem à mulher de negócio. Tombou desmaiada nos braços de Irla. Logo que recobrou os sentidos, retirou-se daquele quarto fatal com um misto de dor e cólera. Irla informou-se sobre quem era aquela que passava tão doces horas com o belo Amazan. Disseram-lhe que era uma rapariga de negócio, muito complacente, que reunia aos seus outros talentos o de cantar com muita graça.

- Ó céus! ó poderoso Orosmade! - exclamava, chorando, a bela princesa de Babilônia. - Por quem sou eu traída, e com quem! Então aquele que recusou por mim tantas princesas abandona-me agora por uma farsante das Gálias! Não, não poderei sobreviver a esta afronta!

- Eis, senhora - lhe disse Irla, - como são os rapazes, de um extremo a outro do mundo. Ainda que estejam enamorados de uma beleza descida do céu, podem ser-lhe infiéis, em certos momentos, com uma criada de taverna.

- Está decidido - disse a princesa, - nunca mais o verei em toda a vida; partamos imediatamente, e que atrelem meus unicórnios.

A fênix pediu-lhe para esperar ao menos que Amazan despertasse, a fim de que lhe pudesse falar. - Amazan não merece que lhe fales - disse a princesa, e assim me ofenderias cruelmente; julgaria ele que eu te pedi para o censurares e que desejo reconciliar-me com ele. Se me estimas, não acrescentes esta injúria à injúria que ele me fez. A fênix, que afinal de contas devia a vida à filha do rei de Babilônia, não pôde desobedecer-lhe.

- Para onde vamos, senhora? - perguntou-lhe Irla.

Não sei - dizia a princesa, - tomaremos o primeiro caminho que encontrarmos: desde que me afaste para sempre de Amazan, estou satisfeita.

A fênix, mais sensata do que Formosante, porque era sem paixão, consolava-a em caminho observava com brandura que era triste castigar-se pelas faltas de outrem; que Amazan já lhe dera significativas e numerosas provas de fidelidade para que lhe pudesse perdoar o haver-se esquecido um momento; que era um justo a quem faltara a graça de Orosmade; que depois disso tanto mais constante seria ele no amor e na virtude; que o desejo de expiar a falta o faria exceder-se a si mesmo; que tanto mais feliz seria ela; que várias princesas haviam perdoado semelhantes deslizes, com o que se deram muito bem: citava-lhe exemplos; tal era a sua arte de contar, que afinal o coração de Formosante ficou mais calmo e apaziguado; ela desejaria não ter partido tão cedo; achava que os seus unicórnios iam demasiado depressa, mas não ousava desandar o caminho; dividida entre o desejo de perdoar e o de mostrar sua cólera, entre o amor e a vaidade, deixava os unicórnios seguirem; ela corria o mundo, conforme a predição do oráculo de seu pai.

Amazan, ao despertar, cientifica-se da chegada e partida de Formosante e da fênix; sabe do desespero e da cólera da princesa; dizem-lhe que ela jurou que nunca o perdoaria.

- Agora - exclamou ele - só me resta segui-la e matar-me a seus pés!

Seus amigos da boa companhia dos ociosos acorreram ao rumor dessa aventura; todos lhe demonstraram que era infinitamente melhor ficar com eles; que nada era comparável à doce vida que levavam no seio das artes e de uma voluptuosidade tranqüila e refinada; que vários estrangeiros, e até reis, haviam preferido aquele repouso, tão agradavelmente ocupado e tão encantador, à sua pátria e ao seu trono; que aliás a sua carruagem se achava quebrada e um marceneiro lhe estava fabricando outra do mais recente modelo; que o melhor alfaiate da cidade já lhe cortara uma dúzia de roupas à última moda; que as damas mais inteligentes e amáveis da cidade, em cuja casa representavam muito bem, estavam cada qual com um dia marcado para lhe oferecerem festas. A rapariga de negócios, durante esse tempo, tomava o seu chocolate na alcova, ria, cantava e fazia mil negaças ao belo Amazan, que afinal se apercebia de que ela não tinha mais senso do que um ganso.

Como a sinceridade, a cordialidade, a franqueza, bem como a magnanimidade e a coragem compunham o caráter desse grande príncipe, já havia ele contado as suas desgraças e viagens aos amigos; sabiam que era primo da princesa; estavam informados do funesto beijo que ela dera no rei do Egito.

- Perdoam-se essas pequenas extravagâncias, entre parentes - lhes disseram eles, - sem o que teríamos de passar a vida em eternas querelas.

Nada o demoveu da intenção de sair empós de Formosante; mas, como o carro ainda não estivesse pronto, foi obrigado a passar três dias com os ociosos, entre festas e prazeres. Afinal despediu-se deles, beijando-os, fazendo-os aceitar os mais bem montados diamantes do seu país, e recomendando-lhes que fossem sempre levianos e frívolos, pois tanto mais amáveis e venturosos seriam. "Os germanos - dizia ele - são os velhos da Europa; os povos de Albion são os homens feitos; os habitantes das Gálias são as crianças, e eu gosto de brincar com eles."